Cecília Seabra

Quem são as Cassandras do seu negócio?

25 de fevereiro de 2024

Cassandra era uma das princesas de Troia, filha de Príamo e Hécuba, que foi abençoada com o dom de prever o futuro. Como nem na mitologia grega havia almoço grátis, o dom veio acompanhado de uma maldição: ninguém acreditaria nela.

A analogia da gestão corporativa com a mitologia grega não é autoral. Ouvi no excelente podcast Gregos e Alagoanos, da Rádio Novelo, e me lembrei da referência enquanto escutava Angela Donaggio em entrevista ao Hub ESG da LLYC, consultoria na qual tenho um assento no conselho. Coincidentemente as duas tratavam do caso Brasken em Maceió.

Então, A Comunicação Nossa de Cada Dia circula hoje com a proposta de darmos alguns passos para trás. Não vamos conversar sobre comunicação, sustentabilidade, ESG etc., mas sobre ética. Ou a falta dela. Isto porque, se a sua empresa está cheia de Cassandras — e ela está! — a causa bem provável pode ser o assunto desse artigo. 

Assim como Cassandra da mitologia previu as consequências do cavalo de Tróia, ninguém acreditou e o final da história a gente já conhece, as Cassandras corporativas estão dia a dia alertando para uma série de questões que são sistematicamente ignoradas e que não têm a ver (somente) com governança e (falta de) sustentabilidade na estratégia, mas com uma visão de gestão que não integra a ética como intrínseca.

O papel da educação executiva

Calculamos os riscos por muitas metodologias e lentes distintas que, ao fim, terminam com o custo financeiro de eventuais consequências da tomada de decisões. Isto porque somos treinados para gerar valor para o acionista. Isto posto, até ganhamos o direito de começar a incluir outros públicos. Mas primeiro, lucro.

As consequências desse modelo nós conhecemos, e não têm a ver exclusivamente com gestão e governança, mas com a falta da ética como condutora da alteridade na relação da empresa com seus públicos de relacionamento. Isto se reflete na cultura, na gestão e no modelo de liderança e nos tipos de impactos aceitáveis.

Um dos efeitos: Cassandras corporativas para lá e cá, alertando sobre temas relevantes, que se tornam menores quando equilibrados no bottom line das finanças (sempre para poucos, em detrimento de impactos negativos para muitos). Puxemos pela memória casos recentes envolvendo empresas que não deram a devida relevância a informações sobre o quanto suas operações implicavam em riscos inimagináveis e que simplesmente foram ignorados em prol dos lucros acima dos Direitos Humanos, da biodiversidade, da própria governança (sem ética).

Ética e Compliance

Uma empresa tem uma linha de produtos sustentáveis, mas, no todo, fica léguas a desejar. As pressões por greenwashing são grandes e seu trabalho requer ceder ou sair. Outra cumpre todos os requisitos de boas práticas e possui selos e certificações, mas é sabido que permite uma série de práticas condenáveis. Há as que cumprem a legislação, mas que se porventura afrouxar se adaptam mesmo sabendo que os impactos são nocivos.

Por trás de todas essas questões — e muitas outras que nos testam a coerência e a própria ética — está o choque entre ética e compliance. Muitas vezes, essas palavras andam lado a lado nas definições identitárias de missão, visão, propósito, além de povoarem os valores de muitas organizações. Na prática, o que observamos é o choque.

Esses desafios não são produto do meu senso crítico. Veja: em janeiro, a PwC divulgou sua Pesquisa Global com Investidores, feita no apagar das luzes de 2023, que apontou que o índice de percepção mundial de greenwashing é de 94% e nada menos do que nove em cada dez dos 340 investidores e analistas brasileiros, ou 98% do total, acreditam que os relatórios de sustentabilidade das empresas contém informações não comprovadas.

Pergunto: algum deles parou de investir em alguma companhia que dá retorno financeiro, mas age longe da ética ao permitir o greenwashing como prática? Sim, claro. No entanto, quando há, é minoria. Finanças first.

 

Cassandras corporativas, resistam!

É possível gerir negócios com lucro e menos impacto negativo. O Sistema B está aí completando a maioridade com muitas empresas provando que negócios podem andar lado a lado com pessoas, meio ambiente, ética, sustentabilidade (…) e serem forças positivas.

É também da resistência que podemos diminuir a dissonância entre o que a sociedade espera das instituições e organizações, e o que elas se dispõem a comunicar.

Quanto mais avançamos em diversidade em todas as instâncias hierárquicas de uma organização — incluindo os conselhos de administração, que em tese deveriam ter poder e responsabilidade sobre a crítica às decisões executivas —, mais questionamos e damos origem a pequenos incômodos, que geram desconforto, que geram mudanças e inovações. É preciso resiliência, porque é urgente a necessidade de avanços.

Como bem aprendi na melhor aula sobre cultura organizacional que tive com um presidente de conselho perfil padrão: a cultura de uma empresa é um transatlântico, você toma uma decisão hoje e os reflexos virão quando provavelmente não estivermos mais aqui. Demora. Requer tempo e manter o leme firme para que a direção não se perca com os muitos ventos que sopram lá e cá.

Ou seja: ou transformemos a visão estratégica, executiva e de liderança para que incorpore a ética, ou o leme seguirá firme em outros entendimentos distorcidos sobre governança, gestão e sobre o exercício das nossas próprias funções. E claro, o retorno para o acionista continuará acontecendo. Ao custo de muitas coisas negativas que já não deveriam mais ser aceitáveis.

 

Caminhos possíveis

A transversalidade e multidisciplinaridade na educação corporativa é uma força que pode ser acionada imediatamente. Como:

  • Inter relacione dimensões de ética, responsabilidade, direitos humanos, sustentabilidade, ESG, diversidade, equidade (etc.) aos treinamentos diversos. Tratar dos temas em separado pode parecer priorizá-los, mas acaba contribuindo para a visão de que negócios são uma coisa, ética outra. Você pode fazer isso com a escolha dos profissionais que irá contratar para treinar suas equipes, priorizando formações acadêmicas e experiências corporativas suficientes para sustentar o diálogo entre diferentes temáticas.


  • Ainda que você atue em um ambiente sem liberdade de diálogo e precise do trabalho, é importante exercitar o seu senso crítico e a consciência sobre o que está sendo feito. Um dia, quem sabe, você será a pessoa à frente da tomada de decisão — e poderá fazer diferente?

  • Não aceite check lists como prova irrefutável. Selos, certificações e outros recursos para comprovar conformidades são importantes, mas não significam salvo conduto. Um selo sobre um bom local para trabalhar não significa que todas as suas bases e áreas atendem a esse requisito. Está nos índices de sustentabilidade das bolsas de valores? Idem. Selos e certificações devem pontos de partida para nossa avaliação, e não chegada.

  • Não se esqueça da sua própria ética. Afinal, não vale questionar a firma se no seu dia a dia ela passa longe, combinado?

Cada ato gera consequências. Não deixemos de exercitá-las e de buscar mais olhares para contrapor e complementar nossas visões de mundo, que são limitadas e cheias de vieses.

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