A estrofe de Oração ao Tempo, do Caetano Veloso, está tatuada nas minhas costas e vem abrir a porta para mais uma edição de A Comunicação Nossa de Cada dia, que, como vocês já sabem, não tem periodicidade certa porque circula quando encontro algo pertinente para discutir. Hoje, o convite é uma reflexão sobre o Tempo, e como a maneira como lidamos com Ele está impactando nossa comunicação, nosso relacionamento, nosso bem-estar e a nossa qualidade de vida (vou falar só sobre esses aspectos, mas a lista é infinita).
Esse texto está sendo gestado há algum Tempo na minha cabeça. Porque vai faltar Tempo. Sempre falta Tempo!
Aí que o estopim para a ideia virar post foi esse disclaimer em um áudio que recebi: “Ceci, vou te mandar esse áudio, porque daí você pode ouvir acelerado…”
Respondi que prefiro que me mande áudios picados, pois não acelero áudios no WhatsApp e expliquei por quê.
Vamos lá?
Não somos máquinas
Enquanto a discussão sobre se o ChatGPT e qualquer outra IA que vier na sequência vai ou não tomar o nosso lugar no mercado de trabalho acontece exaustiva (e superficialmente, porque assim convém), em vez de voltarmos nossa potência para o que é humano, aceleramos ainda mais a cobrança por produtividade e performance, substantivos nos quais somos totalmente limitados, porque somos humanos, por mais que tenha gente que não acredite.
Nem vou comentar o fato de que a executiva que dormiu no Twitter para dar conta do seu trabalho virou chacota quando todos nós somos iguais. Ou queremos ser acusados de quiet quitting? Ou não respondemos mensagem de trabalho fora do horário? Ou não levamos trabalho “pra casa”?
Literalmente, você pode nunca ter dormido no escritório, como ela. Mas certamente já trabalhou a mesma quantidade de horas, com o mesmo nível de ansiedade. E foi descardado/a/e do mesmo jeito. Eu já.
Qual o prazo? Para ontem.
Qual a prioridade? Tudo.
O que você faz de meia noite às 6?
E o coração acelera quando a gente vê escrito no WhatsApp que a pessoa do outro lado está digitando.
Humanos precisam de vazios. Vazios para verdadeiramente olhar.
Perceber.
Tatear.
Escutar.
Perdurar.
Prestar atenção de verdade.
E não somente reagir, como fazemos na imensa maioria do tempo que estamos acordados.
O tempo que passamos socialmente, a sós ou com outras pessoas, é civilizatório. É o que faz com que a gente registre os instantes que, juntos, formarão a nossa consciência.
De quantos instantes você se lembra de ter vivido ontem?
Se lembra do que comeu no café da manhã?
Se lembra de ter feito somente uma coisa por vez?
Ou fez comida enquanto ouvia podcast; tomou banho repassando o que teria que apresentar em uma reunião; se deslocou pela cidade — em uma velocidade anti-natural para o humano, que é via meios de transporte — a não ser que você vá engarrafado do início ao fim e aí equilibramos o tempo 😉 …
Não acelero áudios no WhatsApp porque a nossa percepção sobre a realidade com esse tempo presente que se sobrepõe ao que é a cronologia natural das coisas já está bastante distorcida para eu potencializar um pouco mais tornando anti-natural o tempo da fala humana.
A fala humana é o sinal mais claro (e fácil) que temos do tempo do outro. Afinal, o recebemos mesmo sem conhecer a pessoa um pouco mais profundamente.
E o que isso tem a ver com a Comunicação Nossa de Cada Dia
Falamos muito sobre empatia, escuta e mais um monte de verbos e substantivos que conversam com o quanto precisamos perceber mais o outro para melhorarmos nossa comunicação e nosso relacionamento — e muitas coisas mais! Na contramão, aceleramos tudo o que toca no tempo natural das coisas porque sofremos de FOMO — Fear of Missing Out, ou o medo de não estarmos totalmente a par de tudo o que está acontecendo, que tem sido discutido como a patologia do nosso tempo, aquilo que poderia estar sendo, uma ansiedade generalizada e intratável.
Estamos presos num futuro espremido em presentes — cada vez mais imediatos e reativos — e aquela sensação super familiar de que não conseguimos aproveitar o tempo, não conseguimos nos fazer presentes. E nem vou entrar nos multi e metaversos porque daí haja hiperlink, até mesmo para mim e para o padrão que vocês, que já me acompanham, estão acostumados…
Esse presente subdividido entre vários instantes imediatos é regido pela ansiedade pelo que está por vir, pelo que ainda não fizemos. E isso é sempre muito mais do que, de fato, vamos conseguir fazer. Porque vai faltar tempo. Sempre falta tempo!
E aí o nosso lazer vira produto. Nosso tempo “livre” é comercializável. De um único produto que já fomos, nos tornamos vários, subdivididos, compartimentados. Nossos dates são monetizáveis. Tudo é monetizável. Nada mais é possível de existir sem virar dinheiro para alguém (que dificilmente somos nós mesmos).
Acontece que se a gente não consegue manter uma relação amigável com o tempo, vamos ter medo dele o tempo todo. Medo de perder o prazo. De não saber tudo o que precisa para… De “ter que” tudo.
Mas vamos à Comunicação Nossa de Cada Dia…
O discurso de escutar o outro, de se colocar no lugar etc., está restrito a isso mesmo — discurso, pois, na prática, não temos tempo para nada disso!
Afinal, para que ouvir um áudio na velocidade normal, se podemos duplicá-la?
Por que escutar as pessoas se podemos fazer um audit qualquer em cima do que falam nas plataformas? (não estou dizendo que o audit não tem o seu valor, ok?)
Se não prestarmos atenção no quanto estamos nos relacionando de forma reativa, e não de convivência humana, não tem treinamento, cursinho, faculdade, especialização, red ou blue pill que dê jeito de melhorar a forma como nos comunicamos, Meuzamores.
Vamos às proposições
Muita gente não entende porque me “trivido” entre São Paulo, Rio de Janeiro e Petrópolis, onde está a Casa da Montanha. Espero que depois desse texto eu precise responder menos vezes essa pergunta (risos otimistas).
Uma das coisas que todos nós podemos fazer dentro de nossas rotinas, sejam as pessoais, ou em equipes, é ter um tempo para parar de antecipar demandas. Incluir atividades que sejam feitas em um tempo que gere memórias, e não no tempo da produtividade. Encontrar os amigos. Conversar ao vivo. Esperar a pessoa falar e aí processar para responder, e não reagir.
Por aqui, além de ter o privilégio da Montanha, tiro um tempo, por exemplo, para ver filme com meus filhos (em sua maioria filmes trash, que eu jamais escolheria, mas eles adoram).
Então, fazemos petiscos, assistimos, rimos, sacaneamos o autor da escolha, porque é sempre um primor de enlatado que a gente termina com a sensação de “pra quê isso, sem or?”… Criamos memórias.
Outra coisa é não responder “só uma coisinha” que a turma do trabalho insiste em perguntar entre sexta à noite e segunda de manhã (a não ser, claro, que seja uma situação excepcional).
Com as pessoas que são minhas parceiras de trabalho, minhas equipes, as reuniões ou começam, ou terminam, com conversas pessoais, sobre o que estamos vivendo, sobre coisas do cotidiano, nunca do trabalho. Reservamos 1 hora, resolvemos o que é preciso objetivamente e o resto do tempo é para fortalecer vínculos e nos escutar, desabafar, rir, na grande maioria das vezes de nós mesmos.
Escuta e empatia são, como quase todas as coisas da nossa vida, fruto de exercício, de prática, não de intenção e discurso, que são excelentes pontos de partida mas não passam disso mesmo, pontos de partida, não caminho e tampouco chegada.
Especial esse texto estar circulando numa sexta-feira, porque a intenção é mesmo provocar. Incômodo, reflexão e, por que não?, mudança. Caso você, que chegou até aqui comigo, mude sua rotina de finde para criar memórias, me conta?
Para finalizar, bora encontrar os “você” que o Renato Russo definiu lindamente como “que tem a cura pro meu vício | De insistir nessa saudade que eu sinto | De tudo que eu ainda não vi”.
A resposta está sempre nas pessoas e nas relações humanas.
Pelo menos até aqui.
Fiquem com o meu abraço, e até a próxima!
Links:
Oração ao Tempo.
Índios.
E para o pocdast Vibes em Análise, episódio Fora do Tempo.